O
sentido da medida
Cristiane
Grando
Escritora e
tradutora. Doutora em Letras (USP), com pós-doutorado em Tradução
Literária (Unicamp).
Sonia
Hirsch, jornalista e escritora voltada para a promoção da saúde,
que escreve como quem cozinha e cozinha como quem escreve, afirma que
as melhores coisas da vida são simples: sol da manhã, paisagens
verdes, céu muito azul... e que as melhores comidas da vida também
são simples. E continua: “A
boa comida também remete com frequência a um ingrediente que não
consta da receita. Aos elogios, quem a fez responde: 'Fiz com amor.'
Soa como um segredo daquela mão, daquele coração, que ao dosar o
sal e o azeite tem uma consciência aguda de sua própria medida.”
(“Meditando na cozinha”. Rio de Janeiro: Corre Cotia)
“Dona
Benta: comer bem”, livro tradicional da culinária brasileira
ensina: “O
destino das nações depende da maneira de alimentar do seu povo.”
- segundo Brillat-Savarin. O ato de comer exerce em nossa vida um
papel não só coletivo, mas também individual; é uma atitude
cotidiana que muitas vezes realizamos com o piloto automático
ligado, distraídos, sem sentir o sabor, sem exercitar os cinco
sentidos. Segundo Sonia Hirsch: “Comer é pessoal e intransferível.
Junta no prato história de vida, influência familiar, referências
culturais, situação econômica, desejos inconscientes e sabe-se lá
que temperos. […] No fim das contas, comer é alimentar-se, mas
também aprender quem se é.”
Importante
é ser
comedido - que é uma virtude da prudência, da moderação e do
respeito, a si mesmo e ao planeta. Ser comedido ao comer e intuir a
medida exata ao cozinhar - como a palavra justa ao escrever, “le
mot juste” em francês - são duas formas de viver em estado
meditativo, concentrado no presente. Concentrado em seu corpo - se
necessita de alimentação ou se estamos comendo por compulsão, o
que só se consegue identificar se exercitamos com frequência o
autoconhecimento - e concentrado no presente, ao decidir quais
atitudes e medidas tomar ao preparar um prato, o que nos permite
exercitar a observação do que acontece exteriormente e não apenas
do que vivemos em nosso
mundo interior. Nos versos
de “o maître e o poeta”, publicados na revista número
32
da
Fundação Biblioteca Nacional,
“Poesia Sempre”,
comparo o ato de escrever com o de preparar um bom prato: “escolher
palavras/
como quem sabe/ a quantidade exata de sons/ e o modo de preparar a
massa// o tempo aproximado de misturá-los/ até encontrar o ponto//
como quem intui e conhece/ o jeito de mexer/ o ritmo que os
ingredientes exigem das mãos/ e o olhar amoroso// a entrega tão
necessária/ para que poucas palavras/ sejam poesia”. Saber
escolher e medir sons, ingredientes, tempo, ritmo... e misturá-los
ao amor e à entrega, que sempre é um ato amoroso.
Sobre
o valor da pausa na alimentação, ou seja, o jejum, Sonia Hirsch
alerta: “'O que o jejum não cura, nada cura', diz um velho
provérbio alemão.” E continua dizendo que até mesmo jejuns de
poucas horas entre as refeições são importantes porque dão tempo
de completar a digestão e de esvaziar o estômago antes de comer
novamente; que o jejum da noite é fundamental e se for de 12 horas
permite que o organismo se refaça e se autodesintoxique. Hirsch
aconselha que bebamos muita água fresca de manhã, bebericada aos
golinhos e, para os que apreciam, que bebamos chás. Eu aconselharia:
beber chá sem açúcar, o que aprendi no Chile. Sente-se melhor,
assim, o seu sabor. Adoçar café e chá significa tomar boa
quantidade de açúcar ao dia.
A
abstinência ou privação não deixa de ser um exercício que nos
ensina a valorizar o que temos. O que anuncio no início do meu livro
“Fluxus”:
“às vezes/ é bom sentir fome/ para só depois morrer/ de
saudade”.
GRANDO,
Cristiane. “O
sentido da medida”.
Fique em Evidência.
Ed. 44, Ano 3. Cerquilho, março
de 2014,
p.30.