Jorge
Bercht… o Jorge da gaita
Por Cristiane Grando
O arquiteto Jorge Rugardo Bercht veio
morar em Cerquilho há pouco mais de uma década. Nos conhecemos na
semana de seu aniversário de 80 anos, quando ele apresentava a um
grupo de novos amigos cerquilhenses cinco peças de suas
“coreocromias”. Jorge foi um multiartista. De seu desejo de ser
cineasta, desenvolveu, com suas fotografias, audiovisuais
(coreocromias), que foram apresentados, ao longo de sua vida, na
França, Alemanha, Suíça e Brasil. Suas coreocromias são danças
de imagens que se fundem acompanhadas por música de épocas e
estilos variados, criando um ritmo próprio para cada obra.
De
ascendência alemã, o pequeno Jorge falava com seus pais, irmão e
irmã em alemão, lia livros vindos da Alemanha em casa e na escola,
na cidade de Porto Alegre, onde nasceu; quando menino, manteve
contato constante com artistas internacionais que se apresentavam em
Buenos Aires e na capital do Rio Grande do Sul. Seus pais fizeram
parte do grupo que criou as condições ideais para que a capital
gaúcha recebesse os espetáculos que passavam por Buenos Aires antes
de ir a São Paulo e Rio de Janeiro. Muitos artistas de renome
internacional se hospedaram em sua casa, por falta de hotéis naquela
época; essa convivência despertou no pequeno Jorge o gosto pela
arte.
De
seus estudos de música e de suas experiências com canto e coral
surgiu o artista que dominou como poucos a arte de tocar gaita. Desde
muito jovem tocava gaita em rádios no Rio Grande do Sul e chegou a
ganhar um prêmio. Nesses últimos dez anos, muitos cerquilhenses
ouviram o “Jorge da gaita” tocar uma dezena de gaitas que
selecionava para cada ocasião, retiradas de uma coleção
impressionante de mais de 40 instrumentos que ele guardava num
armário antigo, que também exibia um alaúde que ele tanto
estimava. Ficávamos impressionados com a qualidade da música que o
Jorge despertava entre seus dedos ágeis. Certa vez, foi convidado
por um amigo cerquilhense para tocar em sua casa no dia de seu
aniversário, para que “os sons da gaita impregnassem as paredes”.
De sua paixão e
sensibilidade pela combinação de cores e formas, formou-se
engenheiro-arquiteto na Escola Politécnica da USP na década de
1950, trabalhou como arquiteto, urbanista e professor em São Paulo,
fez pós-graduação na Sorbonne, em Paris, onde viveu por dois anos.
Projetou
casas, edifícios e escolas em estilos inusitados para a sua época,
que se caracterizam em especial pelo uso do vidro para compor paredes
e pela combinação de uma grande quantidade de cores em uma mesma
obra arquitetônica. Orgulhoso, citava a Catedral de Nossa Senhora da
Glória, que projetou em Cruzeiro do Sul (Acre), construída em 1957
em estilo germânico e com forma octogonal numa área de vegetação
amazônica.
Jorge Bercht, em suas crônicas
fotográficas, registrou o seu maior amor: as aventuras do cotidiano
de seus filhos e netos, em festas, carnavais e em viagens de férias
pela Europa e por várias partes do Brasil, numa época em que as
grandes estradas estavam ainda em construção em nosso país.
Demonstrava amor e orgulho ao falar de seus filhos, sempre. Tinha
orgulho de contar que mandou fazer um carro enorme para suas viagens
em familia, para que coubessem mãe, pai e os 10 filhos. Fotografou
os filhos em preto e branco, e os netos, em cores: evolução da
fotografia registrada em duas gerações. Jorge lia muito desde
criança e nos últimos tempos adorava discutir sobre novas
tecnologias.
Seus 91 anos de vida foram mágicos.
Em 5 de agosto passado, Jorge Bercht, com a mesma suavidade que viveu
a última década, partiu… cantarolando e assobiando. Partiu deste
mundo mas continua vivendo em Cerquilho: foi sepultado no velório
novo e segue vivendo no coração de seus familiares e amigos que
aqui deixou. Como cerquilhense, agradeço sua família por ter-nos
dado a honra de receber cidadão tão ilustre em nossas terras. Para
o querido Jorge e sua amada família, continuaremos sempre com os
braços abertos, para recebê-los calorosamente.
“Sabia
que você é o melhor amigo que uma pessoa pode ter?” – foi a
última pergunta que lhe fiz. Com difuculdade para falar, respondeu
que “não” com a cabeça, um gesto mais de sua humildade.
Concluí: “Você é o meu melhor amigo!” E lhe agradeci várias
vezes por tudo o que ele fez por mim, pela minha carreira literária
e pela cultura cerquilhense. Ele sorriu. Estava em paz consigo e com
os demais. Assim ele se foi: em paz, deixando para trás o perdão a
todos, o desapego, e no seu corpo um coração que parou suavemente
de bater, o mesmo enorme coração que soube acolher tanta gente com
amor.
GRANDO, Cristiane. “Jorge Bercht: o Jorge da gaita”. Fique em Evidência. Ed. 38, Ano 2. Cerquilho, setembro de 2013, p.22.