jueves, 21 de noviembre de 2013

Homenagem ao artista e educador Jorge Bercht: engenheiro-arquiteto, fotógrafo, gaitista




Jorge Bercht… o Jorge da gaita

Por Cristiane Grando

O arquiteto Jorge Rugardo Bercht veio morar em Cerquilho há pouco mais de uma década. Nos conhecemos na semana de seu aniversário de 80 anos, quando ele apresentava a um grupo de novos amigos cerquilhenses cinco peças de suas “coreocromias”. Jorge foi um multiartista. De seu desejo de ser cineasta, desenvolveu, com suas fotografias, audiovisuais (coreocromias), que foram apresentados, ao longo de sua vida, na França, Alemanha, Suíça e Brasil. Suas coreocromias são danças de imagens que se fundem acompanhadas por música de épocas e estilos variados, criando um ritmo próprio para cada obra.

De ascendência alemã, o pequeno Jorge falava com seus pais, irmão e irmã em alemão, lia livros vindos da Alemanha em casa e na escola, na cidade de Porto Alegre, onde nasceu; quando menino, manteve contato constante com artistas internacionais que se apresentavam em Buenos Aires e na capital do Rio Grande do Sul. Seus pais fizeram parte do grupo que criou as condições ideais para que a capital gaúcha recebesse os espetáculos que passavam por Buenos Aires antes de ir a São Paulo e Rio de Janeiro. Muitos artistas de renome internacional se hospedaram em sua casa, por falta de hotéis naquela época; essa convivência despertou no pequeno Jorge o gosto pela arte. De seus estudos de música e de suas experiências com canto e coral surgiu o artista que dominou como poucos a arte de tocar gaita. Desde muito jovem tocava gaita em rádios no Rio Grande do Sul e chegou a ganhar um prêmio. Nesses últimos dez anos, muitos cerquilhenses ouviram o “Jorge da gaita” tocar uma dezena de gaitas que selecionava para cada ocasião, retiradas de uma coleção impressionante de mais de 40 instrumentos que ele guardava num armário antigo, que também exibia um alaúde que ele tanto estimava. Ficávamos impressionados com a qualidade da música que o Jorge despertava entre seus dedos ágeis. Certa vez, foi convidado por um amigo cerquilhense para tocar em sua casa no dia de seu aniversário, para que “os sons da gaita impregnassem as paredes”.

De sua paixão e sensibilidade pela combinação de cores e formas, formou-se engenheiro-arquiteto na Escola Politécnica da USP na década de 1950, trabalhou como arquiteto, urbanista e professor em São Paulo, fez pós-graduação na Sorbonne, em Paris, onde viveu por dois anos. Projetou casas, edifícios e escolas em estilos inusitados para a sua época, que se caracterizam em especial pelo uso do vidro para compor paredes e pela combinação de uma grande quantidade de cores em uma mesma obra arquitetônica. Orgulhoso, citava a Catedral de Nossa Senhora da Glória, que projetou em Cruzeiro do Sul (Acre), construída em 1957 em estilo germânico e com forma octogonal numa área de vegetação amazônica.

Jorge Bercht, em suas crônicas fotográficas, registrou o seu maior amor: as aventuras do cotidiano de seus filhos e netos, em festas, carnavais e em viagens de férias pela Europa e por várias partes do Brasil, numa época em que as grandes estradas estavam ainda em construção em nosso país. Demonstrava amor e orgulho ao falar de seus filhos, sempre. Tinha orgulho de contar que mandou fazer um carro enorme para suas viagens em familia, para que coubessem mãe, pai e os 10 filhos. Fotografou os filhos em preto e branco, e os netos, em cores: evolução da fotografia registrada em duas gerações. Jorge lia muito desde criança e nos últimos tempos adorava discutir sobre novas tecnologias.

Seus 91 anos de vida foram mágicos. Em 5 de agosto passado, Jorge Bercht, com a mesma suavidade que viveu a última década, partiu… cantarolando e assobiando. Partiu deste mundo mas continua vivendo em Cerquilho: foi sepultado no velório novo e segue vivendo no coração de seus familiares e amigos que aqui deixou. Como cerquilhense, agradeço sua família por ter-nos dado a honra de receber cidadão tão ilustre em nossas terras. Para o querido Jorge e sua amada família, continuaremos sempre com os braços abertos, para recebê-los calorosamente.

Sabia que você é o melhor amigo que uma pessoa pode ter?” – foi a última pergunta que lhe fiz. Com difuculdade para falar, respondeu que “não” com a cabeça, um gesto mais de sua humildade. Concluí: “Você é o meu melhor amigo!” E lhe agradeci várias vezes por tudo o que ele fez por mim, pela minha carreira literária e pela cultura cerquilhense. Ele sorriu. Estava em paz consigo e com os demais. Assim ele se foi: em paz, deixando para trás o perdão a todos, o desapego, e no seu corpo um coração que parou suavemente de bater, o mesmo enorme coração que soube acolher tanta gente com amor.

Jorge Bercht (Porto Alegre, 1922 – Cerquilho, 2013) soube reconhecer a beleza que existe na vida cotidiana. Sua obra extensa - música, fotos, projetos arquitetônicos e coreocromias – merece ser organizada, exposta e conservada, em especial em Cerquilho, a terra que ele escolheu para viver a última década de sua vida. Suas obras são puros gestos de beleza, sensibilidade, delicadeza. Aos 91 anos, sua mente estava repleta de projetos para o futuro. Aos seus familiares e amigos deixou um imenso legado como ser humano e artista. A sabedoria e genialidade permeavam suas obras e vida cotidiana. A nós cabe reviver esses sonhos plantados por Jorge Bercht no espaço cultural Jardim das Artes, que fundamos em 2004 em Cerquilho, onde exerceu presença marcante na vida cultural. A nós o grande amigo Jorge Bercht deixou este pensamento que manteve presente em seu cotidiano até os últimos minutos: viver é sonhar.


GRANDO, Cristiane. “Jorge Bercht: o Jorge da gaita”. Fique em Evidência. Ed. 38, Ano 2. Cerquilho, setembro de 2013, p.22.


"A doença do diploma"




A doença do diploma
Paula Silva e Cristiane Grando *


Se o diploma do ensino superior na geração anterior à nossa marcava o fim dos estudos, hoje representa apenas o início de uma longa jornada. Os cursos de pós-graduação, em diversos níveis, têm se apresentado como o caminho natural de todos os que concluem a graduação e, paralelamente, as certificações e os cursos de idiomas vem sendo cada vez mais valorizados e exigidos nas empresas.
Em The Diploma Disease (A Doença do Diploma), de 1976, o sociólogo britânico Ronald Dore mostrou sua desconfiança sobre o aumento acelerado de exigências de formação e questionou: Mais diplomas significam pessoas mais bem formadas e melhores profissionais? Para ele, estas exigências fazem parte de um processo de burocratização das empresas e alta concorrência pelas vagas de emprego, o que não permitem que se conheçam as habilidades dos candidatos, sendo o diploma uma forma simples e impessoal de selecioná-los. Desse modo, haveria um período maior de escolarização por razões que não têm nem a ver com a aquisição de conhecimento real para o exercício de determinada profissão, nem com o desenvolvimento pessoal e satisfação própria daquele que se forma, uma vez que grande parte da formação está vinculada à aquisição burocrática das qualificações necessárias para conseguir emprego.
Hoje somos pressionados a atingir níveis mais altos de escolarização para realizar atividades profissionais que antes não exigiam mais do que o ensino médio. Por isso, vale a pena pensar: Será que a minha formação prioriza apenas objetivos financeiros ou também busca apreender novas formas de ver o mundo, favorecendo o autoconhecimento, algo que é tão importante para que o ser humano possa se sentir realizado em seu trabalho e em sua vida cotidiana?
* Paula Silva é Coordenadora de Cultura de Cerquilho
Cristiane Grando é Diretora do Teatro Municipal de Cerquilho

SILVA, Paula; GRANDO, Cristiane. “A doença do diploma”. Fique em Evidência. Ed. 36, Ano 2. Cerquilho, julho de 2013, p.28.


"Escrever bem no ambiente profissional"



Escrever bem no ambiente profissional
Cristiane Grando - Escritora; Doutora em Letras (USP) com pós-doutorado em Tradução Literária (Unicamp); Diretora do Teatro Municipal de Cerquilho.

Passamos mais de uma década na escola e não tivemos aulas de produção de textos. Como profissionais, somos obrigados a buscar, ao longo da vida, formas de suprir essa deficiência em nossa formação. Em todo campo do saber, é desejável que um profissional saiba se expressar oralmente e por escrito. Os escritores, jornalistas e professores, em especial, desde os primeiros anos de formação, deveríamos nos preocupar com o aprendizado da escrita correta. Infelizmente não é isso que se observa: nota-se a falta de domínio das regras gramaticais e da ortografia em muitos textos publicados ou difundidos a um grande público (nas escolas, centros culturais, Internet). Sempre busco conscientizar os meus colegas de trabalho para que pouco a pouco se aperfeiçoem e aprendam a se expressar por escrito com esmero, pesquisando quando não dominam um tema e lembrando-os que é importante ter a opinião/visão/revisão de outros sobre os seus trabalhos. Pensemos: qual é minha responsabilidade ao escrever textos? Apenas difundir ideias, comunicar-me com outras pessoas? Ou devo ter consciência de meu papel como educador? Um educador é aquele que se preocupa com o bem-estar e crescimento de sua comunidade, mesmo que não esteja em sala de aula. Quando escrevo, devo lembrar que outras pessoas, ao lerem meu texto, memorizarão as palavras enquanto leem. Qual é a minha responsabilidade perante a sociedade se escrevo errado?

As aulas de redação deveriam ser quesito obrigatório nas escolas pois é justo pensar que a maioria das profissões exige a comunicação escrita. O ideal seria que as escolas oferecessem aulas de “Língua Portuguesa: Gramática e Redação” (que discutisse as distintas formas de uso da gramática e os diferentes efeitos que geram no texto que está sendo escrito, não apenas em frases retiradas de seus contextos), e de “Literatura” (que lesse e interpretasse com os estudantes textos literários do Brasil, de Portugal e dos países africanos de fala lusitana, realizando às vezes diálogos com literaturas de outras línguas).

O que fazer para suprir essa falha em nossa formação? Se não domino as regras da gramática, devo buscar formas de aperfeiçoar a minha escrita. Primeiro: identificar as minhas falhas ao escrever. Como? Entregando cada texto que escrevo para profissionais e amigos (se não puder contratar um profissional da área, um revisor de texto, professor ou jornalista com boa formação) que corrijam meus textos. Nos ambientes profissionais, o ideal é que três pessoas leiam e revisem um texto antes de ser publicado. No cotidiano, deveríamos pelo menos encontrar uma pessoa que nos acompanhasse na revisão de cada texto que estamos escrevendo. Segundo: ao identificar falhas em minha formação, buscar superá-las. Por exemplo, se alguém identifica que cometo certo erro gramatical, aprender a forma correta. A consulta a bons dicionários (Houaiss e Aurélio) e a boas gramáticas (Celso Cunha, Pasquale Cipro Neto, etc.) é tarefa essencial no cotidiano profissional de quem escreve. Terceiro: fazer anotações sistematizadas do que vou aprendendo, para que, nos momentos de dúvidas, possa consultá-las. À medida que vou me conscientizando da importância de escrever bem, crio uma forma particular de organizar meus estudos, o que me levará ao meu objetivo, que é escrever textos que transmitam com clareza as ideias que pretendo transmitir e que zelem pelo bom uso da língua.

Uma ferramenta que auxilia no aperfeiçoamento da escrita é a leitura. Quanto mais lemos bons textos, mais chances temos de memorizar a ortografia e as regras gramaticais. Nesse ponto nos deparamos com outra questão essencial: saber escolher as fontes de pesquisa, os textos que lemos, o que ouvimos na rádio e assistimos na televisão. Tudo isso influencia nossa forma de pensar, de ver a vida e de nos expressar.

Assim como foi deixado de lado o aprendizado da escrita nos últimos anos, o expressar-se oralmente com desenvoltura é algo que o brasileiro já não domina: muitos de nós não nos sentimos preparados para falar em público, nem para ler um texto em voz alta. Não sabemos “ler para outro”, a fim de que o público consiga entender claramente o que estamos lendo em voz alta; não sabemos encontrar o ritmo de leitura adequado para cada texto. Há algo mais belo que ouvir um poeta ou escritor – e até mesmo um político - que sabe ler em público, falar ou declamar poemas, seus ou alheios? A escola deveria ser um espaço para reflexões sobre a oralidade e exercícios de leitura em voz alta. Mas esse é um tema para outro texto.




GRANDO, Cristiane. “Escrever bem no ambiente profissional”. Fique em Evidência. Ed. 37, Ano 2. Cerquilho, agosto de 2013, p.26.

"Ler para o público"



Ler para o público

Cristiane Grando – Escritora e tradutora. Doutora em Letras (USP), com pós-doutorado em Tradução Literária (Unicamp).

Assim como o aprendizado da escrita nos últimos anos tem sido abandonado, expressar-se oralmente com desenvoltura é algo que o brasileiro já não domina: muitos de nós não nos sentimos preparados para falar em público, nem para ler um texto em voz alta. Não sabemos “ler para outro”, a fim de que o público consiga entender claramente o que estamos lendo; não sabemos encontrar o ritmo de leitura adequado para cada texto. Há algo mais belo que ouvir um poeta, escritor ou professor que sabe ler em público, falar ou declamar poemas, seus ou alheios? A escola deveria ser um espaço para estudos sobre a oralidade e exercícios de leitura em voz alta.
O saudoso amigo Jorge Bercht me ensinou que toda leitura pública deveria prezar pela pronúncia das palavras finais de cada verso ou frase, sem que se baixe o tom de voz, a fim de que o público possa escutar bem o texto até as últimas palavras antes das pausas. Muitas pessoas têm o hábito de ler em público como se estivessem lendo para elas mesmas – ele criticava.
Num curso de locutor de rádio, aprendi que ao usar microfone devemos ler com a voz um pouco mais baixa do que o normal os sons “p”, “b” e as palavras que terminam com “s”. Num curso sobre performance, aprendi a respeitar mais o silêncio que exigem certos poemas na leitura em voz alta, assim como o silêncio entre quase todas as estrofes. A escritora Hilda Hilst me ensinou que nem sempre se deve fazer pausa no final de cada verso ao ler um poema.
Um exercício interessante é limpar a voz antes de falar em público. Nos cursos de oratória, de locutor, de canto lírico, são explorados vários tipos de exercícios com essa finalidade. Costumo repetir inúmeras vezes e rápido a palavra “mini” para limpar minha voz: mini-mini-mini-mini... Recursos de aulas de teatro também podem ser úteis numa leitura em voz alta, mas se forem usados com bom senso. Ler e falar textos decorados numa mesma apresentação pode gerar dinamismo na leitura em público.
Saber ouvir um texto é fundamental a fim de encontrar o seu ritmo de leitura adequado: O que o texto quer transmitir? Que efeitos ele nos provoca? Ler e interpretar, ler à exaustão até compreender as mais sutis de suas mensagens, as camadas mais profundas de leitura, a sua sonoridade e pausas... eis exercícios essenciais quando se busca ler um texto para o público. Há pessoas que gostam de gravar o que leram para em seguida ouvir-se e ir pouco a pouco corrigindo seus erros e maus hábitos de leitura. Outras fazem esses exercícios diante de um espelho.
Que tal se treinássemos em casa ler em voz alta como se houvesse diante de nós um público? E se procurássemos um público para pôr em prática algumas dessas ideias?


GRANDO, Cristiane. “Ler para o público”. Fique em Evidência. Ed. 38, Ano 2. Cerquilho, setembro de 2013, p.28.

"Teatro não é só comédia"



Teatro não é só comédia

Cristiane Grando – Escritora e tradutora. Doutora em Letras (USP), com pós-doutorado em Tradução Literária (Unicamp). É Diretora do Teatro Municipal de Cerquilho.

Rir é uma experiência libertadora. Segundo a dramaturga e professora Cleise Furtado Mendes: “Para o corpo, o choque libertador que exercita e relaxa uma parte dos músculos tem sido visto como poderoso auxílio contra várias doenças, e o conceito dos hospitais-circo e dos palhaços-médicos surgiu há vários anos como resultado de pesquisas...” (In: “A[l]berto: Revista da SP Escola de Teatro”, no 1. São Paulo: Primavera de 2011, p.87). Chorar, em muitas ocasiões da vida, também é uma vivência necessária. Assistir a uma peça de teatro é um meio para expurgar nossas dores e para reviver alegrias através de situações no palco semelhantes às que vivemos no cotidiano.
Ir ao teatro é um direito de todo cidadão. Em espaços públicos, os gestores culturais deveriam priorizar uma agenda com muitas opções de atividades gratuitas ou com preços populares. Segundo a “Enciclopedia del estudiante Larousse” (Santiago de Chile, 2002, p.83): “Durante muito tempo, o teatro foi considerado um entretenimento para a elite. Mas alguns homens de teatro desejaram que todos participassem. Na década de 1930, o poeta francês Jacques Prévert montou uma companhia que atuava para os operários nos pátios das fábricas. Em 1951, Jean Vilar, fundador do Festival de Aviñon, na França, começou a dirigir o Teatro Nacional Popular (o TNP) em Paris. Era um teatro público, subsidiado pelo Estado, cujas entradas eram mais baratas que as de salas privadas. Queria fomentar o gosto pelo teatro em maior quantidade de gente. E de fato foi um sucesso: mais de cinco milhões de expectadores foram ao TNP entre 1951 e 1963.” (tradução livre)
Um dos espetáculos que me fez rir muito foi uma farsa medieval: “O pastelão e a torta”, apresentado pelo grupo Folgazões: Companhia de Artes Cênicas, de Vitória (ES). O texto, de autor anônimo, atravessou séculos e ainda hoje apresenta humor e graça. Provoca o riso a partir de situações corriqueiras do cotidiano sem cair na banalidade.
Rir ou chorar: bons motivos para você frequentar um teatro.

P.S.: Em Cerquilho, com sede numa sala da Rodoviária, funciona a ONG Hospitalhaços, com voluntários que levam a alegria e o riso à Santa Casa e centros de saúde.


GRANDO, Cristiane. “Teatro não é só comédia”. Fique em Evidência. Ed. 39, Ano 2. Cerquilho, outubro de 2013, p.28.

viernes, 8 de noviembre de 2013

"Patrimônio cultural"



Patrimônio cultural
Cristiane Grando
Escritora e tradutora. Doutora em Letras (USP), com pós-doutorado em Tradução Literária (Unicamp). É Diretora do Teatro Municipal de Cerquilho.

“O Estado português na época de colonização [do Brasil] é um Estado absolutista. Em teoria, todos os poderes se concentram, por direito divino, na pessoa do rei. O reino – ou seja, o território, os súditos e seus bens – pertence ao rei, constitui seu patrimônio. Trata-se de um Estado absolutista, qualificado pelo patrimonialismo. […] Se a palavra decisiva cabia ao rei, tinha muito peso na decisão uma burocracia por ele escolhida, formando um corpo de governo. Mesmo a indefinição do público e do privado foi limitada por uma série de medidas, tomadas principalmente no âmbito fiscal, com o objetivo de estabelecer limites à ação do rei. O 'bem comum' surgia como uma idéia nova que justificava a restrição aos poderes reais de impor empréstimos ou tomar bens privados para seu uso.” - afirma o historiador Boris Fausto em seu livro “História Concisa do Brasil”.
O “bem comum”, como anuncia Fausto, é tema de nosso interesse. Exemplifiquemos: o Teatro Municipal de Cerquilho é uma obra de arte pública, um “bem comum”. Por fora, tem uma beleza pouco comum, que pode causar certo estranhamento a quem não esteja acostumado a contemplar obras de arte do modernismo e pós-modernismo. Por dentro, é de uma beleza estonteante. Com suas curvas, este prédio projetado pelo renomado arquiteto Ruy Ohtake, cujo auditório é espaçoso - com 540 lugares -, e ao mesmo tempo acolhedor, possui uma acústica invejável. Pessoas das mais variadas idades, ao entrar neste auditório, mesmo somente para vê-lo nos dias em que não há espetáculo, entram num estado de êxtase, pela contemplação inevitável do belo. Essa reação é uma das provas de que o Teatro Municipal de Cerquilho é uma obra-prima. Mais que isso, o nosso Teatro é um “bem comum”, insisto. Por isso, deveria ser zelado pela população e visitantes como um dos maiores patrimônios da região. Além disso, as atividades - aulas, ensaios e espetáculos - que o Teatro recebe quase todos os dias do ano constituem um patrimônio material ou imaterial, ou seja, possuem imenso valor cultural. Em outras palavras, o Teatro Municipal de Cerquilho é um bem material que acolhe em seu espaço interno e externo (em eventos ao ar livre) patrimônios materiais (exposições de pinturas e fotos) e imateriais (teatro, dança, literatura, música) da cidade e do país, e, algumas vezes, até mesmo do exterior.
Segundo o “Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa”, “patrimônio” é o “bem ou conjunto de bens naturais ou culturais de importância reconhecida, que passa(m) por um processo de tombamento para que seja(m) protegido(s) e preservado(s)”. Observem bem o significado da palavra “tombamento”. Muita gente pensa que seu significado é “derrubar”, mas no caso do patrimônio histórico, arquitetônico e/ou cultural, é o contrário: significa “ato ou efeito de 2tombar, de fazer o 2tombo; ato de se guardar alguma coisa num arquivo público”. Em outras palavras, fazer o “tombo”, em sua segunda acepção, é montar o “inventário dos bens de raiz com todas as demarcações; ou o registro ou relação de coisas ou fatos referentes a uma especialidade, a uma região etc.”
Triste é ver que há cerquilhenses que não reconhecem o valor dos patrimônios materiais e imateriais, que são “bens comuns”, ou seja, que podem e devem ser usufruídos por todos os cidadãos independente de sua classe social, cor, sexo etc. Exemplo dessa falta de consciência: pessoas irresponsáveis recentemente picharam as paredes do nosso bem maior, o Teatro Municipal de Cerquilho. Isso nos alerta que os professores e pais deveríamos reforçar o ensino de respeito aos bens públicos, aos bens alheios e inclusive de respeito ao próximo. Tema a ser retomado constantemente em nosso cotidiano, em casa, nas escolas e centros culturais, até mesmo nas reuniões religiosas (missas, cultos, ensino religioso). É nosso dever preservar os patrimônios de Cerquilho e de nosso país, assim como respeitar os patrimônios de povos estrangeiros, as diferenças culturais... é um dever e um direito, terrenal e divino.



GRANDO, Cristiane. “Patrimônio cultural”. Fique em Evidência. Ed. 40, Ano 2. Cerquilho, novembro de 2013, p.28.